" (...)
Cantando amor, os poetas na noite
Repensam a tarefa de pensar o mundo.
E podeis crer que há muito mais vigor
No lirismo aparente
No amante Fazedor da palavra

Do que na mão que esmaga."

Hilda Hilst

Se gostou, volte sempre!!!!

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Paraíso, Agora por Roberto Freire


Há muitos anos, quando era médico dos operários de uma fábrica que ficava perto de Santo André, eu fazia o percurso de São Paulo até lá por meio de trem suburbano, que apanhava na Estação da Luz. Cada uma dessas viagens (ida e volta) era um mergulho enriquecedor e aprofundador daquilo que já chamei neste livro de saldos de povo que existem em mim, apesar de tudo. Quando ia para a fábrica, pegava o trem das seis e trinta da manhã. Meus companheiros de viagem eram quase que exclusivamente operários e comerciários.

Certa manhã, sentei-me diante de uma mulher de uns quarenta anos, operária, e de um garoto de dezoito anos, seu filho, comerciário. Suas profissões, vim a saber no fim da viagem, quando trocamos algumas palavras. O que pretendo contar é o diálogo havido entre os dois, mãe e filho, à minha frente, falando alto e com a intensidade do amor em crise.

O rapaz queria saber a opinião da mãe sobre o caderno de poemas que tinha escrito e que lhe dera para ler na véspera.

-Bonitos. Muitos não entendi. Mas me deu medo...

-Medo? Por que medo, mãe?

-Você gosta mais de escrever poesias do que de trabalhar no escritório, não gosta?

-Gosto muito mais. Quer dizer, não gosto de trabalhar no escritório e adoro escrever poesias... Vou ser sincero: às vezes, lá no escritório, fico escrevendo uns versos...

-Você vai acabar perdendo o emprego, filho. Está vendo porque eu disse que tinha medo?

-Mas é uma coisa assim que vem de dentro de mim, não dá pra controlar, ou faz ou arrebenta. Sabe, assim como vontade de fazer pipi... Mas é do jeito da vó, lembra, quando ela tinha aquela doença de velhice, e fazia pipi na cama, na sala, na rua, onde estivesse...

- Me explica uma coisa: se você trabalha de dia, estuda de noite, joga bola sábado de tarde e domingo de manhã, namora domingo de tarde e de noite, a vontade de fazer esse tal de pipi-poema interrompe o que você estiver fazendo, onde estiver, mesmo, como sua avó?

-Não. Só faço pipi igual à vó quando tou no escritório e nas aulas.

-Eu desconfiava. Você vai acabar perdendo o emprego...

-Arranjo outro...

-Se o negócio do pipi continua, você perde esse emprego também, e o outro, e o outro...

-É, a senhora tem razão, pode acontecer, é...

-E acaba reprovado na escola... acaba também não sendo ninguém, feito nós...

-Mas serei um poeta!

-Poeta?

-É, poeta! Tem muito poeta no Mundo.

-Tem, tem, eu sei. Mas tudo morrendo de fome, desempregado...

-Nem todos, mãe...

-Pega um jornal de domingo, filho, pega a parte de anúncios de classificados, espia direito, e vê se tem algum anúncio oferecendo emprego pra poeta!

-Não tem, não preciso ver, eu sei que não tem.

-E então?

O rapaz virou o rosto para o vidro, parecendo estar olhando a paisagem feia, amarga e triste do subúrbio paulistano, mas, talvez, não tão feia, tão amarga e triste quanto deviam ser os seus pensamentos e sentimentos naquele momento, supunha eu, tirando por mim. A mãe, com jeito sofrido, angustiado, como que cumprindo um dever de responsabilidade, insistiu, agora em tom baixo e cuidadoso, pois devia conhecer a sensibilidade do filho:

-E então, meu filho?

Sem se voltar - e eu o imagino vendo a feia paisagem suburbana passando veloz diante de seus olhos e se deformando e diluindo nas lágrimas que continha, envergonhado além de tudo, dentro dos olhos, respondeu mais para dentro que para fora:

-Você tem razão, mãe. Vou parar com a poesia. Não estou velho e doente como a vó, vou dar um jeito de não ficar mais mijando minhas poesias nas calças...por aí...

-É, filho, tenho pena, as coisas não tinham de ser assim, mas são. A gente não pode fazer o que gosta, ainda mais quando o que se gosta é de poesia...

E sorriu. Abraçou o filho. Beijou-o na testa. Ele virou o rosto para mim. Então vi que o menino tinha os olhos enxutos e deles escapavam xispas de ódio.


***

Viva Eu Viva Tu Viva o Rabo do Tatu!
Roberto Freire, Meu Mestre

Tela: Vino Morais

12 comentários:

  1. Simplesmente fantástico.
    Mostra ainda mais que sua poesia é alimentada de um ódio..
    O ódio que é o combustível para ele conseguir chegar.
    Infelizmente, temos que usar as ferramentas que temos em mãos..
    Nada acaba antes do final!

    Beijos Lou!

    ResponderExcluir
  2. Essa tela representa uma história semelhante mas aí o personagem é um empresário de sucesso á custa da corrupção e que no final cai no poço.Insere-se no contexto actual Angolano embora a tela tenha sido pintada em 1985.Beijos Lu e um abraço ao pistoleiro corvo pois aprecio os seus comentários.

    ResponderExcluir
  3. -É, filho, tenho pena, as coisas não tinham de ser assim, mas são. A gente não pode fazer o que gosta, ainda mais quando o que se gosta é de poesia...

    E sorriu. Abraçou o filho. Beijou-o na testa. Ele virou o rosto para mim. Então vi que o menino tinha os olhos enxutos e deles escapavam xispas de ódio.
    triste não poder cantar ao mundo o que amamos...
    Bjos achocolatados

    ResponderExcluir
  4. Penso eu que nao se deve matar a poesia que se tem dentro do coração e da alma,,,ela tem que ser solta pelo mundo....beijos querida e um lindo final de semana.

    ResponderExcluir
  5. Olá Lou,
    Passei para um abraço, agradecer mais uma visita e desejar um feliz final de semana para você, também.Obrigada pelo carinho.

    ResponderExcluir
  6. BEijo carinhoso de otimo sabado pra ti amiga....

    ResponderExcluir
  7. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  8. QUERIDA SABES QUE O ÈS. QUERES QUE ESCREVA AQUI AS PROVAS. ENTÂO VEREMOS A TUA LIBERDADE DE EXPRESSÂO.

    ResponderExcluir
  9. CUIDA-TE AS TUAS PALAVRAS VÃO CIRCULAR PELOS BLOGS E NA NET PELOS TEUS AMIGOS PORCA E EM DIALOGOS POETICOS

    ResponderExcluir

Deixa sua SEMENTE aí... Obrigada! BEIJOS!