
Há muitos anos, quando era médico dos operários de uma fábrica que ficava perto de Santo André, eu fazia o percurso de São Paulo até lá por meio de trem suburbano, que apanhava na Estação da Luz. Cada uma dessas viagens (ida e volta) era um mergulho enriquecedor e aprofundador daquilo que já chamei neste livro de saldos de povo que existem em mim, apesar de tudo. Quando ia para a fábrica, pegava o trem das seis e trinta da manhã. Meus companheiros de viagem eram quase que exclusivamente operários e comerciários.
Certa manhã, sentei-me diante de uma mulher de uns quarenta anos, operária, e de um garoto de dezoito anos, seu filho, comerciário. Suas profissões, vim a saber no fim da viagem, quando trocamos algumas palavras. O que pretendo contar é o diálogo havido entre os dois, mãe e filho, à minha frente, falando alto e com a intensidade do amor em crise.
O rapaz queria saber a opinião da mãe sobre o caderno de poemas que tinha escrito e que lhe dera para ler na véspera.
-Bonitos. Muitos não entendi. Mas me deu medo...
-Medo? Por que medo, mãe?
-Você gosta mais de escrever poesias do que de trabalhar no escritório, não gosta?
-Gosto muito mais. Quer dizer, não gosto de trabalhar no escritório e adoro escrever poesias... Vou ser sincero: às vezes, lá no escritório, fico escrevendo uns versos...
-Você vai acabar perdendo o emprego, filho. Está vendo porque eu disse que tinha medo?
-Mas é uma coisa assim que vem de dentro de mim, não dá pra controlar, ou faz ou arrebenta. Sabe, assim como vontade de fazer pipi... Mas é do jeito da vó, lembra, quando ela tinha aquela doença de velhice, e fazia pipi na cama, na sala, na rua, onde estivesse...
- Me explica uma coisa: se você trabalha de dia, estuda de noite, joga bola sábado de tarde e domingo de manhã, namora domingo de tarde e de noite, a vontade de fazer esse tal de pipi-poema interrompe o que você estiver fazendo, onde estiver, mesmo, como sua avó?
-Não. Só faço pipi igual à vó quando tou no escritório e nas aulas.
-Eu desconfiava. Você vai acabar perdendo o emprego...
-Arranjo outro...
-Se o negócio do pipi continua, você perde esse emprego também, e o outro, e o outro...
-É, a senhora tem razão, pode acontecer, é...
-E acaba reprovado na escola... acaba também não sendo ninguém, feito nós...
-Mas serei um poeta!
-Poeta?
-É, poeta! Tem muito poeta no Mundo.
-Tem, tem, eu sei. Mas tudo morrendo de fome, desempregado...
-Nem todos, mãe...
-Pega um jornal de domingo, filho, pega a parte de anúncios de classificados, espia direito, e vê se tem algum anúncio oferecendo emprego pra poeta!
-Não tem, não preciso ver, eu sei que não tem.
-E então?
O rapaz virou o rosto para o vidro, parecendo estar olhando a paisagem feia, amarga e triste do subúrbio paulistano, mas, talvez, não tão feia, tão amarga e triste quanto deviam ser os seus pensamentos e sentimentos naquele momento, supunha eu, tirando por mim. A mãe, com jeito sofrido, angustiado, como que cumprindo um dever de responsabilidade, insistiu, agora em tom baixo e cuidadoso, pois devia conhecer a sensibilidade do filho:
-E então, meu filho?
Sem se voltar - e eu o imagino vendo a feia paisagem suburbana passando veloz diante de seus olhos e se deformando e diluindo nas lágrimas que continha, envergonhado além de tudo, dentro dos olhos, respondeu mais para dentro que para fora:
-Você tem razão, mãe. Vou parar com a poesia. Não estou velho e doente como a vó, vou dar um jeito de não ficar mais mijando minhas poesias nas calças...por aí...
-É, filho, tenho pena, as coisas não tinham de ser assim, mas são. A gente não pode fazer o que gosta, ainda mais quando o que se gosta é de poesia...
E sorriu. Abraçou o filho. Beijou-o na testa. Ele virou o rosto para mim. Então vi que o menino tinha os olhos enxutos e deles escapavam xispas de ódio.
***
Viva Eu Viva Tu Viva o Rabo do Tatu!
Roberto Freire, Meu Mestre
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Vino Morais